11 PREGUNTAS PARA ADEMIR ASSUNÇÃO
1. Seu primeiro livro é o LSD Nô (Ed. Iluminuras)... e agora você está colocando na roda seu segundo livro de poemas, ZONA BRANCA (Ed. Altana, 2006 / Travessa dos Editores, 2006)... Gostaria que você falasse tudo o que pudesse de ambos...
Uma das experiências fundamentais na minha vida foi ter conhecido os cogumelos alucinógenos. Com eles, percebi que o que chamamos de “realidade” é apenas uma medonha redução dos nossos canais perceptivos. Outra experiência fundamental foi conhecer o zen. Se os cogumelos me abriram as portas da percepção através do “desregramento dos sentidos”, como disse Rimbaud, o zen também me ensinou a perceber outras realidades, mas através da disciplina, da concentração. Essas duas experiências criaram em mim uma profunda desconfiança com as palavras. William Burroughs dizia que a lógica aristotélica é um desastre na trajetória humana. Porque podemos entupir nossas cabeças de conceitos e aniquilar nossa percepção direta das coisas. Quando escrevi os poemas do LSD Nô eu estava interessado em fraturar as palavras, arrancar com as unhas as crostas que as encobrem. Queria a palavra em carne viva. Como sempre fui muito ligado à música, tentei fazer com que as palavras soassem como sons de uma cítara indiana, como mantras imantados pela eletricidade de uma guitarra elétrica. Zona Branca é um desenvolvimento dessas mesmas idéias. Só que, neste livro, procurei trabalhar ao máximo as imagens, como se os poemas fossem pequenos filmes sonhados por um nômade cego e louco.
2. Você também me enviou A MÁQUINA PELUDA, livro de prosa experimental & antropofágica... Fale-me também tudo o que puder dessa curiosa máquina...
A Máquina Peluda é um livro de prosa escrito por um poeta. De alguém que não tem uma visão passiva diante da linguagem. O livro expressa minha ancestral desconfiança com as palavras e com a narrativa linear. Expressa também meu desconforto de viver em uma sociedade doente e desritualizada. A maior parte do tempo me sinto como aquele cachorro do poema de Fernando Pessoa: “Deitei fora a máscara e dormi no vestiário / Como um cão tolerado pela gerência”. Mas como não tenho vocação para abanar o rabo, acabo arrumando uma saída pelo humor. Com A Máquina Peluda procurei tirar um enorme sarro de tudo o que acho absurdo: o consumismo, a publicidade, o mundinho da literatura acadêmica e a manipulação política, religiosa, histórica e jornalística. Creio que o livro tem parentesco com a antropofagia de Oswald de Andrade, com o humor cético de Beckett e com a escrita anárquica de Leminski.
3. Você também escreveu o CINEMITOLOGIAS, que ainda não me enviou, mas do qual eu já li três fragmentos na revista CIGARRA, de Santo André (SP)... e que parece um texto híbrido meio prosa e poesia ao mesmo tempo...
Isso, é uma prosa-poética com ritmo de cinema americano. Trabalhei com imagens de sonhos e de mitologias ancestrais. Estou cada vez mais interessado em cavocar no subsolo da consciência humana. Já que vivemos numa época de alucinação coletiva, com uma incessante enxurrada de informações visuais, auditivas e verbais, procuro encontrar alguma essência no meio do excesso. “Cinemitologias” teve apenas 100 exemplares e está totalmente esgotado. Minha idéia era essa mesma: fazer um objeto que se tornasse raridade em pouco tempo. Apenas 100 pessoas possuem um exemplar.
4. O que é um bom poema para você...?
Há uma frase de Nietszche que expressa o que penso sobre este assunto: “De tudo o que se escreve aprecio somente o que é escrito com o próprio sangue.” Você também escreveu algo belíssimo: “O fogo da palavra pode incendiar uma paisagem.” Os poemas que mais me impressionam são aqueles escritos com este espírito.
5. Itamar Assumpção e o Edvaldo Santana já musicaram seus poemas... Fale-me do que você pensa que seja a boa letra de música que sempre acaba compensando o lixo industrial... Gostaria de ouvir você falar dessa nova safra de músicos que começam a se fazer ouvir, como Madan e os outros...
Na orelha do livro Zona Branca escrevi uma espécie de fábula contemporânea utilizando a idéia da “White Zone”, que encontrei no disco “Joe’s Garage”, de Frank Zappa. Zona Branca seria um presídio de segurança máxima para onde são enviados os rebeldes, dissidentes e arruaceiros. Menos que uma penitenciária convencional, com muros altos e grades de ferro, trata-se de uma área de exclusão localizada fora do espaçotempo. Aqueles que são enviados para lá e que conseguem sobreviver “testemunham a cooptação de muitos artistas, transformados em celebridades e burgueses decadentes. Percebem a grosseira manipulação de fatos e idéias, responsável pelo ostracismo de criadores brilhantes e pelo sucesso de clones descartáveis.” Com isso, quis criar uma metáfora da situação artística brasileira atual. Há criadores brilhantes em atividade no Brasil que estão sendo brutalmente empurrados para a margem, enquanto a indústria veicula clones medíocres e descartáveis. E o pior de tudo: com a condescendência de “antigos rebeldes”, que acabaram se tornando celebridades conformistas, totalmente enquadradas dentro do “star sistem”. Itamar Assumpção é hoje um dos mais vivos e criativos poetas da música popular brasileira. É de uma riqueza imensa. Edvaldo Santana, Madan, Titane, Lenine, Bernardo Pelegrini, são grandes artistas, que poucos conhecem. Por quê? Porque a indústria musical, incluindo as emissoras de rádio e televisão, prefere veicular o lixo, a mediocridade, a repetição, o conformismo. Isso é um crime que deve ser cobrado. Ou vamos nos conformar em viver num país cada vez mais idiota?
6. O que você me diz da poesia no Brasil hoje?
A poesia vive uma situação semelhante. Há ótimos poetas produzindo. Posso citar alguns como Rodrigo Garcia Lopes, Maurício Arruda Mendonça, Ricardo Aleixo, Josely Vianna Baptista, Marcos Losnak, Dennis Radunz, Cláudio Daniel, Mário Bortolotto, Joca Reiners Terron, Marcelo Montenegro, Elson Fróes. Estes escrevem uma poesia vigorosa, rica, contemporânea, desafiadora. Mas os que os jornais veiculam com alarde são geralmente os mais conformistas, mais acadêmicos, mais chatos. Detesto aqueles poetas que vivem repavimentando os caminhos já trilhados por João Cabral, Drummond, Bandeira, Paul Valéry, etc. Bashô já disse há mais de 400 anos: “Não siga os mestres. Procure o que eles procuraram”.
7. Os espaços dignos para a poesia praticamente desapareceram nos grandes jornais do país... que antigamente publicavam poemas semanalmente... Como você percebe o espaço para a poesia na imprensa brasileira?
Quem estiver interessado realmente em poesia que procure as revistas editadas por poetas: Medusa, Babel, Azougue, Pulsar, Carioca. Os grandes jornais só estão veiculando o mofo. Estão totalmente desinformados.
8. Fale de tua convivência com as mitologias outras, indígenas, orientais, o zen, etc., nutrientes de tua palavra-alma...
Palavra-alma, veja que imagem fantástica. Você sabe que os guaranis utilizam a mesma palavra para designar “alma” e “palavra”. “Ayvu”. Ou “ñeeng”. “Ser” e “linguagem”, para eles, é uma coisa só. No livro A Terra dos Mil Povos, Kaká Werá Jecupé, um índio guarani, diz assim: “De acordo com nossa tradição, uma palavra pode proteger ou destruir uma pessoa. Uma palavra na boca é como uma flecha no arco”. Por aí, dá para perceber como grande parte dos povos indígenas encara a força da palavra. O zen, por outro lado, nutre grande desconfiança pela palavra. Os melhores livros sobre o zen advertem logo no início: “Se você quer realmente entender o zen, esqueça os livros e mergulhe diretamente na vida”. Mas esse aparente desprezo do zen pela palavra, na verdade, é um desprezo pelo discurso quando utilizado como anteparo da experiência direta. Porque o zen não é acessível pela via da lógica. Na vida, as coisas não acontecem de forma linear, com sujeito, verbo e predicado. A linguagem, como a utilizamos, é totalmente arbitrária. Por isso, o zen está muito mais próximo da poesia. O que os movimentos de vanguarda do ocidente procuram pode ser encontrado com facilidade nas culturas indígenas e orientais.
9. Gostaria de saber do teu processo de criação... Como nasce um poema seu... Etc...
Sou movido à poesia. Estudo muito. Não para me tornar uma enciclopédia ambulante mas para manter a minha vida em constante movimento. Então, procuro me manter estimulado o tempo todo. Quando minha vida está muito paradona, sem grandes surpresas, aí não adianta forçar que não sai um poema que preste. Não consigo encarar a poesia apenas como um exercício de técnica. É preciso ter algo a dizer. Vejo muita poesia cheia de truques mirabolantes mas que não diz nada. Não basta apenas um “corpo bonito, perfeito”. Sem o sopro de vida incessante, tanto a arte como as pessoas são apenas esqueletos ambulantes.
10. Você também é jornalista... Jornalismo e poesia são inconciliáveis? Gostaria que me falasse do que pensa do jornalismo cultural hoje no país...
Gosto muito do jornalismo, desta coisa imediata, de escrever para ser lido no dia seguinte. Quando praticado com paixão, envolvimento e criatividade, o jornalismo propicia uma rapidez de raciocínio que me interessa bastante. Gosto de ler jornalistas que pensam e escrevem bem. O que anda meio raro, principalmente no jornalismo cultural. Quando comecei no jornalismo, queria escrever com aquela eletricidade do Torquato Neto. Estava cheio de idéias de vanguarda, pensava uma página de jornal como um fotograma de cinema, que podia ser composta com texto, imagens, recursos gráficos, tudo em busca de uma informação total. É assim que penso o jornalismo cultural. Não essa obviedade mórbida que vemos nas páginas da imprensa atualmente. Falta tesão e curiosidade para a maioria dos jornalistas culturais.
11. Você editou com o Ricardo Corona, o Rodrigo Garcia Lopes, o Key Imagure, a Jussara Salazar e a Eliana Borges a revista MEDUSA... Fale um pouco dessa experiência...
Nós estávamos descontentes com o panorama da poesia brasileira que estava sendo mostrado, por isso criamos Medusa. Focalizamos autores contemporâneos que estavam meio na sombra, como Sebastião Nunes, Glauco Mattoso, Pedro Xisto, e abrimos espaço para um punhado de novos criadores. Buscamos o diálogo com outras tradições poéticas, como as indígenas, através de poetas como Jerome Rothemberg ou antropólogos como Betty Mindlin. Valorizamos as pesquisas de novos artistas plásticos e procuramos criar uma linguagem gráfica arrojada e instigante. Enfim, tentamos ampliar a discussão sobre poesia no Brasil e conectá-la com as pesquisas realizadas em outras áreas do conhecimento artístico. Penso que o grande mérito da Medusa foi comprovar que a poesia brasileira continua vivíssima, mesmo contra a vontade dos velhos e desinformados coveiros de plantão.
Mais Ademir Assunção aqui: http://zonabranca.blog.uol.com.br