sábado, 16 de junho de 2007

BLOOMSDAY AYVU AYVU

James Joyce em portugozo
Por DOUGLAS DIEGUES


...1 año puede kontener 1000 años em 1 segundo tudo parece que sempre depende do modo como olhamos para las cosas para el tempo para fuera para dentro y para celebrarmos el Bloomsday também aqui en nostro Ayvu Ayvu empezamos a publicar agora los textos de algunos pesquisadores de la obra de James Joyce en Brasil como Sérgio Medeiros y Dirce Waltrick do Amarante y Donaldo Schüler el tradutor brazileiro del Finnegans Wake essa fiesta lingüística de ese maluko genial chamado James Joyce que deu la vida lo melhor de si para la literatura y cuja obra segue sendo permanente hermosa fuente de inspiracione para escritores de qualquer parte porque James Joyce es un grande poeta de qualquer parte de miles de lenguas y este Bloomsday Ayvu Ayvu vuela dedicado a Haroldo de Campos uno de los inbentores del Bloomsday en Sam Paulo y a Augusto de Campos maestros pioneros del Panaroma do Finnegans Wake puréte portugozo joyciano em traducción-inbención como agora Donado Schüler el nacimiento de uma nueba lengua um portugozo sin data de bencimento dentro de la lengua em que el Brasil nos existe...


DO ULISSES AO FINNEGANS WAKE
por DIRCE WALTRICK DO AMARANTE


Em muitos sentidos, pode-se afirmar que Finnegans Wake foi concebido como uma continuação de Ulisses 1 , muito embora Joyce não visse quase nenhuma ligação entre seus dois últimos livros: “Tendo escrito Ulisses a respeito do dia, eu queria escrever esse livro a respeito da noite. De outro modo ele não tem ligação com Ulisses, e Ulisses não exigiu o mesmo gasto de energia.”2 Ademais, quando Louis Gillet perguntou a Joyce se sua “obra em progresso” se assemelhava a Ulisses, este respondeu: “De modo algum. Ulisses e a Obra em Progresso são o dia e a noite.” Entretanto, “sabia-se que Ulisses era o mundo e seus problemas vistos através do dia de alguns dublinenses. Finnegans Wake é igualmente o ruído do mundo ouvido através da vida noturna e dos sonhos de um cabaré da capital irlandesa.”3 Além disso, para compor seu último romance, Joyce utilizou “velhas notas” não aproveitadas em Ulisses.4

Para muitos críticos, o embrião de Finnegans Wake encontra-se no episódio “Circe” de Ulisses, uma vez que, neste capítulo, que pertence à parte classificada como “Odisséia” (o livro divide-se em três partes: “Telemaquia”, “Odisséia”, “Nostos”), os personagens surgem envoltos numa atmosfera de sonho e magia, muito embora ainda se insiram dentro do plano da consciência, o que não ocorrerá no seu novo livro, todo ele situado no subconsciente, ou inconsciente.5 Acredito que, depois de uma leitura mais atenta de Ulisses, pode-se constatar que o estilo intrincado de Finnegans Wake está espalhado por todo o romance que lhe antecedeu. No episódio “Proteu”, por exemplo, situado no início de Ulisses, as imagens e pensamentos se transformam a cada momento, tal como ocorrerá em Finnegans Wake. Além disso, o leitor de Ulisses ainda encontrará certas frases, em diferentes capítulos, que parecem remeter a algumas idéias que serão desenvolvidas, mais tarde, na última obra de Joyce:

“ – A história – disse Stephen - é um pesadelo de que tento despertar.”6

Essa frase que Stephen, um dos protagonistas de Ulisses, profere no segundo capítulo do livro, parece profetizar Finnegans Wake: conforme já falei, esse romance se situa no plano do sonho, é “um sonho quase sempre assustador, por vezes atroz, repleto de um riso que mascara uma profunda ansiedade. É um pesadelo que termina num despertar.”7

Stephen ainda dirá, no capítulo seguinte, fazendo alusão talvez ao mundo do inconsciente:

“Achas minhas palavras obscuras. Escuridade está em nossas almas, não achas?”8
Segundo o mais importante biógrafo de Joyce, Richard Ellmann, ainda se pode encontrar uma outra ligação entre esses dois romances na última página de Ulisses, que mostra “Molly e Leopold comendo o mesmo bolo de sementes, como Eva e Adão comendo a “fruta de sementes” (como Joyce dizia) quando da queda do homem, e Finnegans Wake também começou com a queda do homem.”9

Se Finnegans Wake não é apenas a continuação lógica de Ulisses, é inegável que nasceu sob a complicada história editorial deste último livro e beneficiou-se da fama e do prestígio que Joyce alcançou com ele. Assim, a fama, duramente conquistada, e a composição de sua última obra, caminharam lado a lado.

Joyce escreveu seu último romance consciente de que já era reconhecido como um dos maiores escritores do século, e esse reconhecimento crítico dava-lhe, com certeza, enorme liberdade para enveredar por experiências literárias de todo gênero. Sobre a fama, ele opinou o seguinte, em Finnegans Wake :

“fame would come to twixt a sleep and a wake.” (“fama viria dexfigurar um sono e um despertar.”) [ FW 192] 10

A notoriedade adquirida com Ulisses permitiu ao escritor, enfim, levar ao extremo a sua concepção estética e prosseguir com coerência na evolução lógica de sua técnica narrativa. O crítico e tradutor espanhol Francisco García Tortosa lança a hipótese de que Joyce não se teria atrevido a escrever um livro tão ousado se não estivesse respaldado pela celebridade que sua última publicação lhe granjeou. O fato é que Joyce não modificou seu modo de escrever, nem mesmo quando a crítica, após a publicação das primeiras páginas e capítulos de Finnegans Wake, mostrou-se adversa, ou quando os amigos sentiram-se forçados a comunicar a ele suas inquietudes, principalmente no tocante à inteligibilidade do seu novo trabalho.11

Após o reconhecimento crítico de Ulisses, Joyce se permitiu provocar no leitor o “desconcerto”, levando-o ao
âmago da linguagem intrincada do inconsciente. Ele parecia ainda acreditar que as polêmicas e incompreensões que circundavam sua nova obra revelavam, de certo modo, sua grandeza. Segundo Richard Ellmann, à semelhança de outros escritores modernos, como Yeats e Eliot, Joyce fazia questão de criar polêmicas, e “quanto mais controvérsia o livro provocasse, mais ele ficava contente.”12

Em outras palavras, Joyce, depois de Ulisses, desejou levar ao extremo a experimentação lingüística da sua prosa e parece que o conseguiu ao escrever as páginas do romance Finnegans Wake.13

Concluindo a discussão a respeito da influência de Ulisses sobre Finnegans Wake, chamaria a atenção para as referências explícitas que este último faz ao primeiro, como esta frase do capítulo sete do livro I, bastante reveladora:

“to read his usylessly unreadable Blue Book of Eccles” (“para ler seu inutilmente ilegível Livro Azul das Eclésias”) [FW 179]14

Em suma, Ulisses está Dirce Waltrick do Amarante presente, como uma referência obrigatória, na própria concepção da obra, que incorpora e tenta superar o experimento artístico do romance anterior, pois Finnegans Wake deveria ir além de Ulisses, conforme disse. 15


Notas da autora
1 ANDERSON, Chester G.. Op. Cit., p.113.
2 ELLMANN, Richard. Op. Cit., p. 856.
3 BUTOR, Michel. Repertório. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 142.
4 ATTRIDGE. Derek. Op. Cit., p. 170.
5 TORTOSA, Francisco García. Op. Cit., p. 21.
6 JOYCE, James. Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p.49.
7 BUTOR, Michel. Op. Cit., p. 143.
8 JOYCE, James. Op. Cit., p. 67.
9 ELLMANN, Richard. Op. Cit., p. 672.
10 São pessoais e não definitivas as traduções de pequenos fragmentos de Finnegans Wake, quando não houver referência a um tradutor específico.
11 TORTOSA, Fransciso García. Op. Cit., p. 22-3.7
12 ELLMANN, Richard. Op. Cit., p. 649.
13 “Nos livros anteriores Joyce forçara a literatura moderna a aceitar estilos novos, novos temas, novos tipos de trama e caracterização. No seu último livro, ele a forçou a aceitar uma nova área do ser, e uma nova linguagem.” (ELLMANN, Richard. Op. Cit., p. 883).
14 Joyce se referia a Ulisses como o Livro Azul, alusão à cor da bandeira grega. Eclésia: reunião de políticos na antiga Grécia.
15 TORTOSA, Francisco García. op. Cit., p.18












Bloom [Desenho de James Joyce]







RUIDORATORIO: Cage des-diz Joyce
Por SÉRGIO MEDEIROS



“I can’t understand why people are frightened of new ideas. I’m frightened of the old ones.”
John Cage


O oratório (gênero de música religiosa, com solo, coro e orquestra) está na igreja, mas o ruidoratório (“roaratorio”, em inglês joyciano) é tudo o que está do lado de fora, isto é, o Universo.

Contudo, depois de fazer essa distinção, John Cage, o músico-poeta norte-americano que foi ao longo da sua vida leitor fervoroso da obra de James Joyce, particularmente de Finnegans Wake, concluiu que o oratório e o ruidoratório são a mesma coisa, não há diferença entre eles. A rua e seus ruídos já penetraram nas salas de concerto e nas igrejas, a palavra de Deus parece conter tanto a harmonia como a desarmonia, o som e o ruído, o silêncio e o fragor. Joyce disse uma vez que Deus é um ruído de rua (Ulysses); ora, levando esse ruído “sagrado” para o campo da música do século XX, sobretudo a norte-americana, poderíamos também afirmar que o ruído é a pergunta e a resposta, ou seja, mais sinteticamente, a pergunta sem resposta de Charles Ives (“The Unanswered Question”).

A palavra “ruidoratório” foi cunhada por Joyce no seu último romance. Na obra de Cage, ela está associada ao seu ambicioso projeto de transformar livros em música. Grosso modo, esse projeto consiste em ler uma obra literária e anotar, um a um, todos os sons que o escritor menciona: uma risada, um latido etc. Concluído esse exaustivo levantamento, o passo seguinte é visitar os lugares e regiões descritos ou referidos na obra, para gravar seus sons caracterísiticos: ruído de trânsito (se for uma grande cidade), um mugido (se for uma fazenda) etc. Numa terceira etapa, reúne-se tudo isso e obtém-se uma peça musical, na qual as fronteiras entre a arte e a vida deixam de ser precisas. Todo leitor é potencialmente um compositor.

Vejamos como Cage concretizou esse seu projeto “nonsense”, ao compor a peça “Roaratorio, an Irish Circus on Finnegans Wake”, utilizando como referência o último livro de James Joyce.

Primeiramente, ele não leu Joyce no sentido convencional, mas des-leu o escritor irlandês, “sobrevoando” as 628 páginas do seu romance e “pousando” casualmente aqui e ali (Cage trabalhava com operações do acaso, ao compor suas peças musicais). Para livrar-se do ego, da imaginação e do gosto pessoal, o compositor norte-americano costumava consultar um oráculo (o I Ching, o “Livro das Mutações” da China Antiga), que lhe revelava como proceder. Da aplicação desse processo à leitura de Finnegans Wake, resultou um texto poético feito de fragmentos joycianos, dispostos na forma de mesósticos, nos quais o nome do escritor irlandês era o eixo. (Quando o nome-eixo está no início dos versos, obtém-se um acróstico; quando está no meio, um mesóstico; e quando está no final, um teléstico — na verdade, Cage misturou as três formas, segundo entendo, obtendo uma forma híbrida.) Ofereço um exemplo:



ObJects
Olives beets
oldwolldY
Cargon of
ProhibitivE pomefructs


Concluída a elaboração desses mesósticos, que se destinavam à publicação, Cage recebeu o convite de Klaus Schöning para lê-los numa estaçào de rádio alemã, onde existe uma sólida tradição de leitura de peças poéticas com acompanhamento musical. Cage aceitou o convite e dedicou-se, a partir de então, à elaboração dos “efeitos sonoros” que, reunidos à sua própria voz gravada em estúdio lendo seus mesósticos, originariam o ruidoratório joyciano.

Finnegans Wake menciona cerca de 5 000 lugares, espalhados pelo mundo. Schöning, a pedido de Cage, escreveu para estações de rádio de todo o planeta, solicitando “sons” dos lugares citados no Wake. Cage, ele próprio, viajou para a Irlanda, a terra natal do romancista e cenário principal do livro. Na Irlanda, Cage percorreu todo o país e gravou os sons mais caracterísiticos de cada lugar. (Durante sua estada de um mês na Irlanda, o compositor conversou com pessoas comuns e artistas populares que lhe disseram que não podiam compreender Finnegans Wake e que, por isso, haviam desistido de lê-lo. “Eu lhes perguntei se eles entendiam seus próprios sonhos”, contou depois Cage. “Eles responderam que não. Penso que agora alguns deles possam estar lendo Joyce, ou, pelo menos, possam estar sonhando que o estão lendo.”) Foi então que o compositor teve a idéia de acrescentar à sua peça um “circus” de canções tradicionais irlandesas, as quais se misturariam aos cantos de pássaros, ruídos de quadas d’água etc. já registrados. Os demais sons descritos ou mencionados por Joyce no seu romance seriam retirados do arquivo sonoro da rádio alemã que solicitara a obra a Cage.

Quando todo esse mateiral ficou pronto, Cage voou para Paris e gravou, no estúdio do IRCAM de Pierre Boulez, sua própria voz lendo em inglês (sem sotaque irlandês) os mesósticos que compusera. O fato de que a obra só tenha vindo à luz graças à colaboração de pessoas de vários países agradou a John Cage, que viu nisso um símbolo da própria complexidade do mundo de Joyce.

No produto final, que reúne idealmente todos os sons e ruídos da Irlanda, do mundo e dos sonhos, a leitura de Cage é quase inaudível; por isso, como sugeri no título deste artigo, Cage des-diz Joyce — o ruidoratório, concluído em 1979 e já disponível em CD, é um rumor mundial sem solo algum.



"ORELHA"
Por SÉRGIO MEDEIROS

Este texto de Sérgio Medeiros foi publicado em forma de orelha de um dos volumes da primeira edicione de la tradução brasileira do FW publicada pela Ateliê Editorial em parceria com a Casa de Cultura Guimarães Rosa do Rio Grande do Sul

Não se pode ler Joyce, mas apenas relê-lo. Essa conhecida máxima adquire novo significado na tradução brasileira de Finnegans Wake, que vem acompanhada de curiosas e imprescindíveis “notas de leitura”, assinadas pelo tradutor Donaldo Schüler. Essas notas, que se seguem à tradução propriamente dita, são (parece-me) uma outra tradução, uma segunda versão do original, permitindo ao leitor não tanto decifrar o sentido profundo dessa obra tão obscura, mas antes “reler” numa outra linguagem, mais clara, mais diurna, o sonho de Joyce e de seus personagens.

As notas de leitura conferem certamente uma marca característica ao trabalho de tradução de Donaldo Schüler – diria que, graças a elas, temos em língua portuguesa duas versões de Finnegans Wake, um livro “sonhado” duas vezes por Donaldo Schüler. Os sonhos dentro de sonhos são talvez a matéria-prima do último romance de Joyce. Vem de Schopenhauer esta imagem, proposta pela leitura pioneira de Campbell e Robinson: Finnegans Wake “é um vasto sonho, sonhado por um único ser humano; mas de tal maneira que todos os personagens do sonho sonham também. Assim, cada coisa se encadeia e harmoniza com tudo o mais.”


Neste volume, estão incluídos os capítulos 5, 6 e 7, do Livro I (Finnegans Wake está dividido em quatro livros, ou quatro partes, entre as quais se distribuem 17 capítulos). Temos aqui, portanto, um fragmento da obra. Quando os demais livros que compõem Finnegans Wake forem publicados em português, poderemos avaliar corretamente o empenho e a ousadia do tradutor brasileiro, mas, desde já, é inegável que um aspecto da obra de Joyce é enfatizado por Donaldo Schüler: o humor.


Caberia lembrar agora uma observação feita por John Cage, que transformou a leitura do romance de Joyce numa obra musical, o impressionante Roaratorio, ou ruidoratório: o músico e poeta norte-americano gostava de repetir que Joyce preferia a comédia à tragédia “porque na comédia – segundo ele declarou, parece-me – libertamo-nos muito mais de nossas preferências e aversões.” Na comédia joyciana, onde a magia verbal supera a distinção entre prosa e poesia, os contrários se unem, as polaridades não se excluem, o livro é uma tensão de antagonismos mutuamente suplementares, como já se observou. Nesse aspecto, o livro parece anunciar certas teorias estruturalistas que só vieram à tona muitos anos após sua publicação, em 1938. Essa dimensão profética do livro apenas comprova sua raiz profundamente mítica. Jacques Derrida afirmará: “Pois não podemos dizer nada que não esteja programado nesse computador de milésima geração, Ulysses, Finnegans Wake, junto ao qual a tecnologia atual de nossos computadores e de nossos arquivos microcomputadorizados e de nossas máquinas de traduzir não passa de uma bricolagem, um brinquedo pré-histórico de criança. (...). Sua lentidão é incomensurável com a rapidez quase infinita dos movimentos das conexões joycianas.” Essa é a razão das grandes gargalhadas que ressoam em Finnegans Wake, para usarmos uma expressão cara a Derrida.


“Como Buckling baleou um Russo no Rush de Janeiro”, “Sensacionais Aventuras de Duas Piranhas e a Queda do Banana”, são frases cunhados pelo tradutor brasileiro. Eu não havia percebido, tendo lido apenas o original, esse aspecto tão intensamente “tragicômico”, não raro grotesco, da última obra do escritor irlandês. Agora, após a leitura da versão brasileira, esse aspecto, sem dúvida essencial à obra, tornou-se muito mais evidente para mim sempre que retorno ao texto original.


Impressa no português do Brasil e não em várias línguas sobrepostas, repleta de estilos e sotaques nacionais, inclusive o sulista, sotaque de origem do tradutor (veja-se a saborosa expressão “Lumptytumtupy Já Deu pra Ty”), a epopéia joyciana é principalmente (creio) a “terra da jocosidade”, embora no original, ou em outras línguas (a obra já foi traduzida na íntegra para o francês, o alemão, o japonês) possa também ser outras “terras”, comportando outras linguagens, outros tons, ou todos os tons.


Se o tom geral que Donaldo Schüler conferiu à sua tradução, até aqui, é o tom cômico, às vezes carnavalesco e grotesco, as “notas de leitura” são, ao contrário, “sérias”, mas isso não significa que sejam acadêmicas. Para começar, Donaldo Schüler preferiu não citar suas fontes, mas para os seus propósitos isso é irrelevante: ele não assume o tom do especialista e sim o tom sereno de um emérito narrador, um contador de mitos universais (o que Joyce sem dúvida também é, sobretudo em Finnegans Wake, obra que pode ser lida como um compêndio de mitos similar às Mitológicas de Claude Lévi-Strauss). Munido de grande erudição (Donaldo Schüler é professor de literatura, vale dizer, grega) mesclada de devaneios deliciosos, nosso tradutor reconta, às vezes com desconcertante simplicidade, o que Joyce teria pretendido dizer na sua língua onírica.


Numa nota, afirma Donaldo Schüler: “Perguntar: O que Joyce quis dizer? – não é sensato. Joyce disse o que disse. Ao dizermos entramos no jogo. Há outro modo de ler?” Donaldo Schüler lê e relê Joyce, jogando sem nunca perder o humor ou a paciência, e nos convida a fazer o mesmo ao oferecer este conselho ao leitor: “Obscuridades borram a clareza das mais elaboradas páginas. No matagal de palavras e frases, pendem cipós, apodrecem troncos, ferem espinhos. Para estabelecer conexões podemos recorrer à habilidade de especialistas. Mas não se busque em outro a firmeza que nos falta. Não se aguarde a aurora de visão plena.” Isto não é só uma nota de leitura, é também uma outra versão, nas próprias palavras do tradutor, daquilo que Joyce teria dito na sua língua, ou melhor, na sua mescla de línguas do presente e do passado.


Os capítulos 1, 2, 3 e 4, publicados nos dois volumes anteriores, eram dedicados ao pai, HCE, Here Comes Everybody; os capítulos incluídos aqui, 5, 6 e 7, são dedicados à mãe, ALP, Anna Livia Plurabelle, embora o último traga como título o nome de um dos filhos do casal: Shem (seu irmão gêmeo chama-se Shaun). Shem é o próprio Joyce, o escritor que revela o proibido, o mundo secreto e terrível que pulula sob a superfície dos sonhos e dos mitos; Shem nos é apresentado como o filho preferido de ALP, a musa; podemos entender agora por que seu nome aparece no título do capítulo 7; coube a ele redigir a carta ou manifesto ditado por sua mãe, que o leitor conhcerá no capítulo 5.


Nesse capítulo e no seguinte, Joyce satiriza a linguagem dos eruditos que tentam, após a recuperação da carta (ela foi desenterrada de um monturo por uma galinha), decifrar o precioso documento que talvez seja o próprio fundo de Finnegans Wake. As “notas de leitura” de Donaldo Schüler, simples e diretas, não procuram decifrar (quase) nada, mas recriam a atmosfera do livro, recontado de outra maneira seus mitos basilares. Um canto paralelo, outra tradução do original que nos permite reler Joyce, já que lê-lo não é possível.















Marilyn Monroe lendo James Joyce











TRADUZINDO EL INTRADUZÍBEL
FINNEGANS WAKE

Driblando todas as impossibilidades com talento e invencione Donaldo Schüler conseguiu hacer que el português portuvuele y portugoze lindamente com su instigante traducione del Finnegans Wake (Ateliê Editorial)
Um dia he enviado algunas perguntitas sobre a tradução do FW, sus impresiones del aparentemente ilegível romance-poema - al Donaldo Schüler. Pero Donaldo, que além di professor de literatura grega y tradutor es um capo del ensayo, já se había entrevistado a si mismo. Lo que se segue es el material que Donaldo Schüler nos hizo llegar generosamente desde la noche circular del Finnegans Wake.. (D.D.)

DONALDO SCHÜLER CONBERSA COM DONALDO SCHÜLER

1. Como traduzir um texto escrito numa lingua universal?
Traduzir para uma língua particular um romance como Finnegans Wake, em que se misturam mais de sessenta línguas, é efetivamente uma traição. Traduzir é sempre trazer outro universo lingüístico ao nosso.
Pergunta-se “como é possível traduzir Finnegans Wake? Jöão Alexandre Barbosa faz outra pergunta: “Como foi possível escrever Finnegans Wake?” O romance baseia-se numa carta. Trata-se de uma carta escavada num monturo por uma ave, a velha galinha (cold fowl) ou velha gelinha (galinha gélida) Hen (galinha em inglês e um em grego) provoca a passagem da unidade à pluralidade. Isso acontece no inverno, época em que a natureza adormecida se prepara para renascer. Hen (galinhen), por ser original,é conceito ligado à queda, à felix culpa, começo da história. O texto da carta, revestido por outros textos, mostra-se em estado de revelação, trabalho sempre retomado e nunca concluído. Fala e traço fundamentam a escrita. O primeiro capítulo alertou para runas, inscrições no barro, na terra. A carta nos leva da natureza à cultura, acrescentando a Finnegans Wake caráter epistolar. A velha gelinha recebe nome, é Belinda, galinha conhecida e premiada.

2. Quer dizer que Finnegans Wake fala sobre a arte de escrever.
Em forrma ficcional, é claro. Para Finnegans Wake a arte de escrever acontece na passagem da selvageria ao barbarismo. O homem ainda se serve de elementos tirados da natureza para fazer as inscrições, mas já intervém o fogo quando se começam a traçar sinais a carvão. Este não é o fogo da natureza, é um fogo doméstico, fogo controlado. Começamos a distanciar-nos da natureza para construir um universo próprio. As palavras grafadas não são as proferidas. Umas e outras obedecem a sistemas próprios. Selvagem é também o mundo que ao despertar deixamos. Não se espere relato fiel de lutas que nos subterrâneos travamos. A verdade não estará, por certo, nos ritmos que inventa nossa habilidade de bardos. Verdadeiros somos quando tropeçamos, quando a falta de palavras expõe buracos, quando o equilíbrio é precário. O que relatamos se passa nos limites da civilização, da barbárie e da selvageria.

3. A carta tem relação com o Novo Mundo?
Tem. Recebe-se a carta transatlantabeticamente (transshipt) de outro mundo, do Novo (Boston). Mundo novo não significa mundo melhor. O Novo Mundo formou-se do Velho. O lixo do Velho Mundo alimenta as raízes do Novo. Sucessos do Novo Mundo alcançam o Velho em viconiano ciclismo renovador. Sempre novas são as instáveis imagens oníricas que transatlantabetizadas alimentam carta e invetigações. Mass. é Massachusetts, é massa informe (sonho), é a missa fúnebre , a encomendação do corpo, presente na fala.

4. Joyce nos reduz a depósito de lixo?
Lixo não é privilégio nosso. A carta foi encontrada num depósito de passadas unidades culturais. Lixo é a tendência de tudo que se fez, escreve e pensa. Enérgicas são as exigências da terra. Até em monumentos artísticos o perene é ilusão. Umas coisas duram mais que outras. Eternidade não há. O tempo deixa marcas em templos, quadros, estátuas e pergaminhos. O desgaste de obras literárias não é só material. Nosso Homero é diferente do vate cujos ritmos encantaram olvidados ouvintes. A morte pertence à economia da vida. Arte que não morre não se regenera, não vive.

5. Mas de que estamos falando, de escrever ou de traduzir?
Para Joyce, escrever já é traduzir. Ele lê e interpreta inúmeros textos do Ociedente e do Oriente, produzidos no presente e em muitas outras épocas. : “como foi possével escrever Finnegans Wake?” Resposta: a paródia. Poderíamos dizer que Finnegans Wake é uma desenvolvida paródia do “Inferno” da Divina Comédia. Paródia é dar uma obra em outra linguagem, paródia é tradução. Diferenças. O mundo de Dante é todo racionalmente legislado até às últimas conseqüências. Joyce: em vez do rigor dantesco, a livre associação de idéias. É a idade da psicanálise. Na distância entre a Divina Comédia e Finnegans Wake, dá-se o sentido. A Divina Comédia é uma camada significante, Finnegans Wake é outra. Nessa distância processa-se o sentido.

6. Como é que se deve traduzir?
Cada texto a ser traduzido impõe suas próprias leis. Não se podem criar leis gerais para a tradução. O tradutor deve aprender com o texto que traduz. Nomes próprios, por exemplo. Finnegans Wake os modifica sistematicamente. Arranca-os dos referentes. Torna-os signifincantes de novas significações. A mudança dos nomes não afeta a constância da vida, atesta até a vida das línguas. Radicalizando, fatos são fatos, fixos, concluídos.

7. Finnegans Wake merece ser traduzido?
Traduzir não é possível. Não há correspondências entre uma e outra língua. Excetuando as linguagens técnicas: tradução mecânica. A lingua literária rompe com todas as subordinações. As decisões do texto criativo são imprevisíveis. Joyce não faz mais do que acentuar este processo. Todos os textos são intraduzíveis. Por isso é necessário recriá-los. Haroldo de Campos: só os textos intraduzíveis merecem ser traduzidos. Traduzir Joyce significa revitalizar um texto em estado de deterioração, ativar o ciclismo viconiano. Sem tradução, o texto morre.



Finnegans Wake, 598.28The urb it orbsA urb ist orbita

Orbita a cidade, orbita o orbe, orbitam o ontem e o hoje, orbitam o tempo e o espaço, o Oriente e o Ocidente, o céu e a terra, vidas, rios, sonhos... orbitam it, id, Es, isso.
Sonhamos? Sonhamos! Com James Joyce, no misterioso Finnegans Wake: princípio e fim, vigília e morte, cotidiano e sonho, experiência e mito.

Reporto-me à linha 28 da página 598. Onde se lê: The urb it orbs. A frase evoca a expressão latina urbi et orbi, que orbita em muitas línguas do Ocidente sem excluir a nossa. Em todas? A frase foi criada quando Roma já era centro do mundo. Urbe era Roma. Só Roma. O mundo orbitava em torno de Roma. O que valia para Roma valia para o mundo.


Roma caiu. Ao lado de Roma proliferaram muitas urbes. Outras cidades disputaram o privilégio de centralizar os acontecimentos mundiais: Lisboa, Madri, Londres, Paris, Berlim, Washington, Moscou... Onde está o centro dos acontecimentos mundiais hoje? Qual é o centro dos centros culturais? Quem dita as regras para a economia mundial? Até a bolsa de São Paulo já é suficientemente forte para resistir às tempestades que abalam Tóquio. Em todos os setores estamos em franco processo de descentralização.

O que hoje é fato já estava em andamento no início do século. E Joyce o sentiu. The urb orbs (a urbe orbita) seria uma frase normal. Mas Joyce, como é de seu costume em Finnegans Wake, despedaça a frase inglesa, a língua do dominador. Podia admitir o imperialismo de uma língua que por séculos tinha condenado o seu povo ao silêncio? Joyce sobrepõe ao verbo orb o substantivo orbit e o dilacera, antepondo it ao verbo. Resultado: The urb it orbs. Pelo texto de Joyce viajam fragmentos de cinqüenta línguas aproximadamente. Em lugar do centro, instalou se o it (isto, isso). Isto (ou isso) orbita. O it, como o Es (id) freudiano, é o reservatório de todos os núcleos, de todas as órbitas imagináveis em giros inumeráveis e imprevisíveis. Não se procure a urbe no mapa, ela é reservatório, possibilidade de ser.

Proposta de tradução: A urb ist orbita. Urb é mais do que urbe. Urb tem a ver com Ur (prefixo alemão para origem), ventre obscuro e misterioso de tudo o que é. Em ist(o) ouve-se a forma verbal ist e o demonstrativo Es da língua em que Freud formulou a teoria psicanalítica.

Isto orbita, e ao orbitar forma o que foi, é e será. Orbitamos nós e as galáxias. Onde situar o centro do universo? Corpos se encontram e desencontram num espaço vazio e sem fronteiras.

Finnegans Wake é o espelho do universo.

[Donaldo Schüler]

OPara ler mais textos de Donaldo Schüler, visite sua página na internet: http://www.schulers.com/donaldo


Fragmento do FW (Livro I - Capítulo 8)

Can’t hear with the waters of. The chittering waters of. Flittering bats, fieldmice bawk talk. Ho! Are you not gone ahome? What Thom Malone? Can’t hear with bawk of bats, all thim liffeying waters of. Ho, talk save us ! My foos won’t moos. I feel as old as yonder elm. A tale told of Shaun or Shem? All Livia’s daughter-sons. Dark hawks hear us. Night! Night! My ho head halls. I feel as heavy as yonder stone. Tell me of John or Shaun? Who were Shem and Shaun the living sons or daughters of? Night now! Tell me, tell me, tell me, elm! Night night! Telmetale of stem or stone. Beside the rivering waters of, hitherandthithering waters of. Night!

[James Joyce]


Não ouço com as correntes de! As lamurientas corrientes de. Mordentes mor cegos, res postas de rústicos ratos. Ho! Você ao solar não iria? Que solitária Maria! Não ouço com o mortelar de morcegos, as liffey-hiantes águas de. Ho, o verbo nos salve! As pernas emperram. Me sinto velha como aquele carvelho. Uma narrativa narrada de Shaun ou Shem? Livifi- lhaos todos. Noturnos falcões nos escutam. Noite! Noite! Tomba a testa. Pende pesada qual pedra, aquela. Que me falas de John ou de Shaun? Shem e Shaun, viventes, filhos ou filhas foram de quem? A noite noita! Fala-me, fala-me, fala-me, carvelha! Noite noite! Conta-me contos de Stem ou Stone. Junto às rio-revantes águas de, correntes-e-recorrentes águas De. Noite!

[Tradução: Donaldo Schüler]


JAMES JOYCE EM PORTUGUÊS

Para La delícia del lector brasileiro existem muitos livros de y sobre James Joyce em português, que se puede encontrar en livrarias y sebos de las capitales brasileiras.

De James Joyce
Ulisses, tradução de Antonio Houaiss, Editora Civilização Brasileira.
Dublinenses, tradução de Hamilton Trevisan, Editora Civilização Brasileira.
Cartas a Nora, tradução de Mary Pedrosa, Editoras Massao Ohno e Roswitha Kempf.
Retrato do artista quando jovem, tradução de José Geraldo Vieira, Editora Civilização Brasileira.
Música de Câmara, tradução de Alipio Correia de Franca Neto, Editora Iluminuras
Giacomo Joyce, tradução de Paulo Leminski, Editora Brasiliense.
Giacomo Joyce, tradução de José Antonio Arantes, Editora Iluminuras.
Panaroma do Finnegans Wake, (fragmentos do FW) Tradução de Augusto e Haroldo de Campos, Editora Perspectiva.
Finnegans Wake/Finnicius revém, Livro I - Capítulo 1, tradução de Donaldo Schüler, Ateliê Editorial/Casa de Cultura Guimarães Rosa.

Sobre James Joyce
Dossiê Finnegans Wake, Revista Cult, nº 31, Fev. 2000, Lemos Editorial.
Joyce e o estudo dos romances modernos, Michel Butor, Richard Ellmann, Ezra Pound, Umberto Eco, entre outros, Editora Mayo.
Joyce no Brasil, organização de Munira Mutran e Marcelo Tápia, Edição Olavobrás/Abei.
Riverrun - Ensaios sobre James Joyce, organização de Arthur Nestrovski, Editora Imago.
James Joyce, de Richard Ellmann, editora Globo.
James Joyce, de Chester G. Anderson, Jorge Zahar Editor.
James Joyce, de Edna O’Brien, Editora Objetiva.



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