quarta-feira, 13 de junho de 2007

JOHN CAGE Y EL XAMANISMO

Sérgio Medeiros nasceu em Bela Vista [Matto Grosso do Sul] y es uno de los críticos literários poetas y traductores mais imnovadores em atividade hoje en Brasil. Ha organizado los dossiês “Estudos Culturais” y “James Joyce” para la revista Cult para la Ha publicado O Dono dos Sonhos, estudio pionero sobre la estructura narrativa de los mitos Xavantes [Ed. Razão Social, 1991; SP). Traduziu, entre otros, Silvia & Bruno, de Lewis Carroll, para a Editora Iluminuras; A Retirada da Laguna, de Taunay, para a coleção Retratos do Brasil, dirigida por Antonio Cândido, da Cia. das Letras; e Morfologia e Estrutura no Conto Folclórico, de Allan Dundes, para a coleção Debates, da editora Perspectiva. Novembro y 13 cartas del oriente, de Gustav Flaubert, com um longo estudo introdutório. Organizou la edición de Irecê e Guaná, de Taunay, com prefácio de Antonio Cândido e posfácio de Haroldo de Campos, tabém publicada pela Editora Iluminuras. Sérgio Medeiros publicou dois livros de poesia: Mais ou menos do que dois y Alongamentos. Actualmente Sérgio Medeiros vive en Florianópolis, onde es professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Durante el 1º Encuentro Internacional de Poesia de Asunciónlândia [Paraguai], Sérgio Medeiros fez una bella konferência sobre poesia, experimentacione y xamanismo en la poética de John Cage, y que hoy lo publicamos en este Ayvu Ayvu. Avanti!


Xamanismo e Experimentação: a obra poética de John Cage

por SÉRGIO MEDEIROS


Ouvimos, como uma introdução à nossa conversa (sublinho o termo) sobre a obra poética de John Cage (1912-1992), as duas peças iniciais das “Sonatas e Interlúdios para Piano Preparado” de 1946-48. Escolhi uma gravação histórica, a da première de 1951, com a pianista Maro Ajemian — opina-se que seria a melhor gravação dessa obra-prima de John Cage. Sobre as gravações das sonatas existentes no mercado, afirmou Richard Kostelanetz:

“For instance, there are several available recordings of Cage’s earliest extented masterpiece, “The Sonatas and Interludes for Prepared Piano”; among the performers are, in roughly chronological order, Maro Ajemian, Yuji Takahasi, Gerard Fremy, Nada Kolundzija, Joshua Pierce, John Tilbury, and Daryl Rosenberg. I tend to prefer the Ajemian, because it was one I heard first three decades ago and the only one I knew for many years. I once heard a sophisticated New York classical disk jockey recommend it as well for “the quality of preparations”. On second thought, however, neither of those two reasons is sufficient for identifying it as best. Though Cage himself performed the work several times in live concerts, no transcription of his interpretation is known to exist.” (Kostelanetz, Richard. “John Cage (ex)plain(ed)”, Nova Iorque, Schirmer Books, 1996, pág. 176).

O fato de que não exista da obra em questão uma gravação do próprio Cage é muito sintomático. Como lembrou Kostelanetz, Cage não tinha simpatia por gravações. Em sua casa não havia toca-discos ou gravadores, e, nos últimos anos de vida, tampouco um cd player. Cage opinava que a música, a sua ou qualquer outra, deveria sempre ser ouvida ao vivo e que toda gravação era algo que se poderia comparar a um postal de uma paisagem, não à própria paisagem. Ele desejava que visitássemos a paisagem ao invés de admirar apenas o postal. Não temos condições, infelizmente, de ouvir agora uma performance ao vivo das sonatas para piano preparado, mas, em troca, temos uma execução gravada que é muito boa ou muito melhor, acredito, do que inúmeras outras, apenas medianas, executadas ao vivo.
Vejamos, antes de iniciar a apresentação da “obra poética” de John Cage, o que é uma piano preparado. Recorrerei, primeiramente, ao crítico Paul Griffiths, autor de uma “Enciclopédia da Música do Século XX”, muito conhecida. No verbete “piano preparado”, lemos que a nova técnica de tocar piano surgiu muito antes da composição das sonatas que acabamos de ouvir, pois Cage já estava interessado em questões musicais ligadas ao ritmo e à percussão desde o início doas anos 40:

“Piano com objetos inseridos entre as cordas: um parafuso e um pedaço de cartolina na “Second Construction” (1940), de Cage, e um pequeno pino com roscas e 11 pedaços de material fibroso para vedação de portas e janelas em sua “Bacchanale” (também de 1940). A técnica foi introduzida por Cage, que também batizou o instrumento (na partitura de “Bacchanale”; na “Second Construction” ainda usa o termo de Cowell, STRING PIANO). As obras posteriores de Cage envolvem mais preparações (45 nas “Sonatas e Interlúdios”) e vêm com instruções precisas sobre onde se devem colocar os objetos, embora o efeito exato vá depender da natureza dos objetos e do piano no qual são introduzidos. Teoricamente, o piano preparado permite ao compositor fazer experiências com som de uma maneira sem igual antes do advento da música eletrônica; contudo, a liberdade passa de fato para o músico, já que os sons não podem ser prescritos “(Griffiths, Paul, “Enciclopédia da Música do Século XX”, São Paulo, Martins Fonte, p.169).

Num livro sobre Arnold Schoenberg (“Shoenberg”, São Paulo, Editora Perspectiva, 1981), o crítico René Leibowitz discute o “Concerto para Violino e Orquestra op. 36” do compositor austríaco, comparando-o com o “Concerto para Violino”, de Beethoven. Em ambas as obras, o “idioma instrumental” teria sido levado aos seus limites mais extremos, de modo que, no caso de Beethoven mais do que no caso de Schoenberg, curiosamente, se poderia dizer que o violino transcende a cada instante o idioma do próprio violino (“Não encontramos em momento algum, na parte solista, nenhuma fórmula convencional, nenhuma figura propriamente ‘violinística’ do gênero das que caracterizam todas as partes de virtuosismo concebidas para esse instrumento. Em vez disso, a parte do violino deste concerto nos parece a cada instante como se tivesse sido transcrita do piano”, op. cit., pág. 124-125). Apropriando-me desse parecer, diria que, no caso das “Sonatas e Interlúdios” de John Cage, estaríamos também diante de uma composição em que o idioma de um instrumento tradicional, aqui o piano, é levado aos seus extremos, como igualmente sucede, aliás, nos “Vingt Regards sur l’Enfant Jesus”, de Olivier Messiaen, mas, no caso de Cage, em particular, até o ponto desse instrumento tornar-se uma pequena orquestra de percussão (os sons oscilam do sino tocando ao tambor sendo percutido) para um só músico (“... as the piano is prepered, the various timbres give an illusion of a percussive ensemble, though there is only one player”, como comenta Otto Karolyi, no seu livro “Introducing Modern Music”, Londres, Penguin Books, 1995, pág. 214). Assim, Cage fez o piano falar um outro idioma, um idioma às vezes “primitivo”, um idioma de outras culturas, como a oriental ou a indígena. Um piano para xamãs e mestres zen-budistas.
Mas John Cage não é apenas um dos músicos mais importantes da segunda metade deste século, um compositor que “alargou as fronteiras” da música ocidental, como já se disse com razão. Filósofo e pintor, Cage também é poeta e publicou em vida vários livros, nos quais reúne reflexões, manifestos, ensaios e poemas. E é sobre estes que desejo falar agora.

No Brasil, devemos ao poeta Augusto de Campos, que é também crítico musical, a popularização do nome do compositor norte-americano não só entre os músicos como, ou principalmente, entre os leitores de poesia. Aproveito para esclarecer que sou professor de literatura e tradutor e não músico, embora apreciador da música erudita contemporânea.

Num ensaio-poema sobre John Cage publicado no livro “O Anticrítico” (São Paulo, Companhia das Letras, 1986), Augusto de Campos opina já na abertura:

“depois que pound morreu
o maior poeta vivo americano
talvez o maior poeta vivo
é um músico
JOHN CAGE
Talvez porque não pretenda ser poeta
‘eu estou aqui
e eu não tenho nada a dizer
e o estou dizendo
e isto é poesia’
diz cage
em sua ‘conferência sobre nada’ (1949)
enquanto os poetas que pretendem dizer tudo
já não nos dizem nada” (op. cit., 213).

Nesse texto, em que declara Cage o maior poeta vivo (estávamos em 1986), Augusto de Campos não ousou afirmar ser ele também o maior compositor vivo. Isso é curioso, pois, nos EUA, Cage é considerado um grande compositor, mas não um grande poeta. O crítico brasileiro teria invertido, de certa maneira, essa apreciação. Os livros de Cage, nas livrarias dos Estados Unidos, não estão nas estantes de poesia, mas naquelas de música, como se o compositor só escrevesse sobre assuntos musicais. “Silence” (1961), “A Year from Monday” (1967), “M” (1973) e “Empty Words”(1979), livros recheados de poesia, são considerados “books on music theory”. É claro que existem, nos Estados Unidos, críticos de literatura importantes como, por exemplo, Marjorie Perloff, que deram aos textos de Cage a devida atenção. Mas o fato é que o compositor tem sido considerado mais importante do que o poeta. Gosto de ambos, e não saberia dizer se Cage é maior poeta do que compositor ou vice-versa. Mas isso não me interessa, uma vez que pretendo mostrar, a partir de agora, como a obra musical e a obra poética de Cage compartilham a mesma estética e, nesse plano, se equivalem, uma iluminando a outra. A sua poesia faz o poema falar um idioma diferente, assim como a sua música faz o piano expressar-se numa outra linguagem musical, estranha, extra-ocidental, conforme vimos.
Voltando ao texto elogioso de Augusto de Campos, gostaria de citar mais esta passagem:

“o seu ‘diário: como melhorar o mundo
(você só tornará as coisas piores)’
1965-1972
é o único poema longo consistente
escrito depois dos ‘cantos’ de ezra pound
que consegui ler e amar” (op. cit., pág. 213).

Comentarei a seguir, ainda que brevemente, esse poema longo, tão prezado por Augusto de Campos.
Os “Diários” de Cage começaram a ser publicados no início dos anos 60, no livro “A Year from Monday”, cuja primeira edição data de 1963. Esse livro já foi traduzido para o português por Rogério Duprat ( a revisão é de Augusto de Campos), sob o título “De Segunda a um Ano” (São Paulo, Editora Hucitec, 1985). Existe dele uma versão em espanhol, segundo Augusto de Campos, que saiu em 1967 no México, pelas Ediciones Era.
Na introdução ao primeiro “diário”, afirma John Cage:

“É um mosaico de idéias, proposições, palavras e estórias. É também um diário. Para cada dia, a partir de operações ao acaso [chance operations], determinei quantas partes do mosaico escreveria e quantas palavras haveria em cada uma.”

Esse comentário do autor é importante. Uma das características dos textos de John Cage, sejam eles poéticos ou críticos, é virem sempre precedidos de uma pequena “explicação” que introduz o leitor no método utilizado pelo escritor.
É esse último aspecto, o método, que desejo focalizar agora, pois a compreensão do método de John Cage — que eu chamaria em português “operações com o acaso” ou, como quer Rogério Duprat, “operações ao acaso”, ou “operações de acaso”, como quer Augusto de Campos — parece ser uma excelente porta para entrar na sua poética, isto é, na sua poética posterior à invenção do piano preparado, quando o compositor se pôs também a escrever poemas. Vejamos, então, o que sãos as “chance operations”, ou operações com o acaso, ou ao acaso, método utilizado posteriormente à criação das “Sonatas e Interlúdios”.
Grosso modo, esse método consiste num processo de tomar decisões com a ajuda do “I Ching”, ou “O Livro das Mutações”, o famoso livro-de-oráculos chinês. Isso não significa que a arte de John Cage seja mística ou psicodélica. Ao contrário, com esse método Cage desejava questionar a primazia que “eu” do artista sempre teve na arte ocidental, a partir da escola romântica. Ao delegar ao livro-de-oráculos o papel de tomar decisões (trata-se de um método mecânico e não inspirado, como já se observou), o artista simplesmente abre mão da sua vontade, das suas preferências e aversões pessoais, passando a compor obras cuja forma final ele não poderá mais prever, já que estas deixariam de ser a expressão da sua subjetividade, por assim dizer — agora as obras são uma experiência criada pelo acaso, ou por operações ao acaso. Um exemplo disso é a sua “Music of Changes” (de 1952) e, naturalmente, os “Diários”.
Esse método, o das operações ao acaso, foi utilizado por John Cage, a partir dos anos 50, para escolher tanto as notas de uma composição musical como as letras ou palavras de um poema. Não escrevo ou componho para expressar a mim mesmo, reiterou diversas vezes o artista norte-americano, mas para modificar a mim mesmo. Ou seja, cada nova obra poética ou musical deveria ser um surpresa para o próprio artista e, a partir daí, contribuir para que ele próprio tivesse uma nova experiência do mundo e da arte. Essa concepção de arte contraria a noção corrente de arte como expressão mais ou menos direta dos sentimentos do artista. John Cage jamais quis fazer tal coisa. “I think of Music not as self-expression, but as Expression”, ele declarou no início da sua carreira. A arte como Expressão, segundo a concepção de Cage, nasce da não-intenção de expressar algo, o que quer que seja.
Isso vai desembocar na sua famosa peça denominada “4’33'’” (Quatro minutos e trinta e três segundos), de 1952, onde o silêncio se torna sinônimo de não-intenção, e a não-intenção sinônimo de “não fazer nada”. Nessa peça, também criada com o auxílio do livro-de-oráculos chinês (as operações de acaso determinaram a duração das três partes da obra, por mais estranho que isso possa parecer), não há sons musicais, apenas o som do ambiente. O pianista se senta diante do piano e move as páginas em branco da partitura. O público então se manifesta, há uma proliferação de “eus” na sala de concerto, a partir do momento em que o eu do artista e o eu do intérprete se calam. Numa biografia de Cage, lemos a respeito dessa peça e do modo como foi composta: “Cage composed it in just the same way as he wrote his other works at this time, applying ‘I Ching’ chance operations to rhythmic structure. Since no sounds are to be intentionally produced in the piece, the structure is illuminated only by the sounds which accidentally occur; (...). Cage built up a three-movement piece by accumulating short silences of chance-determined duration” (David Revill, “The Roaring Silence”, Nova Iorque, Arcade Publishing, 1992, pág. 165).
Augusto de Campos assim descreveu a reação do público diante dessa “peça silenciosa”:

“em ‘4’33'’’ (1952)
um pianista entra no palco
toma a postura de quem vai tocar
e não toca nada
a música é feita pela tosse
o riso e os protestos do público
incapaz de curtir quatro minutos e alguns segundos de
silêncio” (“O Anticrítico”, op. cit., pág. 218).

O silêncio de Cage na verdade não é silêncio, pois é uma certa duração de tempo que vai se enchendo de sons aleatórios, de sons casuais, originários do ambiente e não de um instrumento musical ou, mais remotamente, da subjetividade do próprio artista.
Mas vejamos agora o que sucede nos seus escritos poéticos, particularmente nos “Diários” já mencionados e incluídos no livro “De Segunda a um Ano”, onde o conceito de silêncio também é importante, coexistindo com as, ou sendo uma extensão das operações de acaso, as “chance operations”.
Nos “Diários” de Cage ouvimos várias vozes falando, e não apenas a voz do poeta. O eu do poeta está aberto ao mundo e, quando silencia, passa a reproduzir os falares que o circundam, falares provenientes de diferentes eus que interagem com o seu. A poesia de John Cage silencia a eu lírico (podemos compará-la a um piano mudo) para, a partir daí, captar a fala da platéia, da vizinhança, como ocorre na peça “4' 33””. A ordem ou a disposição desses múltiplos enunciados é determinada, naturalmente, por operações do acaso, inspiradas no mecanismo de leitura de oráculos proposta pelo “I Ching”, o livro mais antigo do mundo, segundo o próprio Cage, grande admirador e conhecedor da cultura oriental.
Se o lirismo é, segundo a definição corrente, uma “Qualidade da obra poética, sobretudo a Poesia, marcada pelo subjetivismo sentimental, quanto ao fundo” (Geir de Campos, “Pequeno Dicionário de Arte Poética”, São Paulo, Cultrix, 1978, p. 102), então temos, nos “Diários”de Cage, um exemplo de poesia não-lírica, pois o poeta não deseja expressar a si mesmo, mas ouvir as vozes que ecoam ao seu redor. Darei um pequeno exemplo, retirado da tradução brasileira do livro “De Segunda a um Ano” (não respeitarei, porém, a disposição gráfica original, nem o uso que o autor faz do negrito, itálico etc.):

“A discussão de George
Herbert Mead sobre a atitude religiosa:
Primeiro a gente se considera um membro de
Uma família, mais tarde uma parte de uma comunidade,
Depois um habitante de uma cidade, cidadão de tal
Ou qual país; finalmente a gente não sente mais
O limite daquilo de que a gente faz parte.
O passado? Resposta de Fuller:
Conserve-o. Times Square, por exemplo: cubra-
O com uma cúpula; ponha mesas e cadeiras dentro,
Com carpete de plástico. (Guarde o que sobrar,
De forma a que lá esteja para ser usufruído, não para ser só
Objeto de leitura.) Os chineses procedem diferentemente,
Relata Häger. Revoltados contra
Si mesmos, mandam os artistas que sustentam a
Tradição, atores, músicos, para os
Trabalhos forçados em lugares distantes. Vida nova.
Depois de cada guerra, a indústria coloca novos
Produtos à venda. Os benefícios dos
Presentes conflitos (frios e quentes, na
Terra e no espaço) serão enormes. Nenhuma
Organização, escola, por exemplo, será
Capaz de proporcioná-los. O único usuário
(Não somente rico mas bastante grande para
Usá-los) será o próprio globo. XLVII
Todas as latas de lixo na Alemanha Ocidental são
Do mesmo tamanho. Elas têm tampas desenhadas de forma a que
A única coisa que a gente tem de fazer é
Colocá-las na traseira do caminhão de
Lixo. O caminhão faz o resto: apanha-as,
Vira-as de cabeça pra baixo, abre
A tampa, recebe o lixo,
Fecha a tampa, e coloca-as de novo
Na calçada”(págs. 60-61).

Nesse breve trecho ressoam muitas vozes, entre as quais distinguimos uma opinião de Herbert Mead sobre religião, outra de Fuller sobre o passado, a atitude dos chineses perante a tradição e um informativo “anônimo” sobre as latas de lixo da Alemanha Ocidental, algo que poderíamos ler, talvez, num jornal ou num folheto sobre ecologia. Trata-se, em suma, de um mosaico de falas díspares, que o poeta registra no seu “diário” recorrendo ao auxílio do “I Ching”. Não se trata de um texto místico, muito pelo contrário: temos aqui um texto profano, aberto para o exterior e não para o interior, o qual recolhe os falares do mundo, num determinado período da história, os anos 60.
Cage, embora não gostasse de gravações de peças musicais, consentiu em registrar a sua própria leitura dos “Diários”. Essa leitura já está disponível numa caixa contendo 8 cds. Creio que será interessante ouvirmos agora um pequeno trecho dessa gravação, que considero uma obra-prima, um dos exemplos máximos de poesia sonora feita no século XX. É uma leitura que trabalha com a intensidade da voz, pois o poeta usa o microfone para criar efeitos de proximidade e distância, expressando-se numa fala composta de muitas vozes fortes e fracas, que fluem num único ritmo monótono, encantatório.
Opinei acima que os “Diários” não seriam um texto místico ou sagrado, mas um texto profano, aberto para o mundo. Seria realmente correto afirmar isso? Quando ouvimos Cage ler os seus “Diários”, sentimos que existe ali algo do sagrado, e, ousaria dizer, um certa aura xamanística, para usar uma expressão que remete ao assunto que tratarei, ainda que superficialmente, a seguir.
Não pretendo arrolar teorias xamanísticas para justificar a relação entre poesia e misticismo, ou poesia e magia, sugerida pelo título desta comunicação, mas apelar simplesmente a uma experiência pessoal, que julgo ser relevante neste caso.
Em 1991, publiquei um livro, “O Dono dos Sonhos” (São Paulo, Razão Social), onde analiso as narrativas míticas e oníricas de um índio xavante, que na sua aldeia tinha a função de sonhar, pois era um “wamaritede’wa”, o dono dos sonhos, ou mais genericamente, um xamã ou feiticeiro capaz de entrar em contato com forças espirituais durante o sono. Apresentando Jerônimo aos leitores, eu escrevi:

“Possivelmente Jerônimo herdou esse encargo [o de “wamaritede’wa”] do pai, que teria sido também um vidente, um sonhador. Quando nasce o filho de um “wamaritede’wa”, sobre o cesto do recém-nascido amarra-se um pedaço da madeira do cerrado chamada “wamari”, que tem a propriedade de provocar sonhos em seu portador. Ao se tornar adulto, o novo “wamaritede’wa” está capacitado a ter sonhos proféticos e não se desfaz nunca da madeira que é a insígnia do seu encargo. O prestígio do “wamaritede’wa” provém do fato de ele ser o sonhador oficial da aldeia e de todos acreditarem em suas profecias”(op. cit., pág. 13).

Deixando de lado por enquanto o aspecto profético dos sonhos do “wamaritede’wa”, desejaria ressaltar que, ao sonhar, Jerônimo ouve vozes, que depois, ao despertar, transmite aos moradores da aldeia. É durante a perda da consciência, neste caso devido ao sono, que os poderes sagrados se manifestam. O xamanismo, como se sabe, está ligado ao transe, a um estado especial em que a voz do xamã pode ceder espaço às vozes dos espíritos. Existe aliás um mito xavante, narrado pelo próprio Jerônimo, que associa o ato xamanístico a uma morte temporária, a uma perda da identidade. Eis o mito, num resumo meu:

"O DOENTE E OS URUBUS
Durante uma caçada coletiva um homem fica doente: furúnculos brotam-lhe por todo o corpo, e ele precisa ser amparado para locomover-se. Como representa excessivo incômodo para o grupo, que está transportando para a aldeia os animais abatidos, ele próprio toma a decisão de permanecer no acampamento, até restabelecer-se por completo, permitindo assim que os companheiros, sua mulher e filhos, inclusive, sigam em frente sem mais delonga.
Os urubus, ao se darem conta de que alguém permaneceu no acampamento agora deserto, deduzem que seja um cadáver e imediatamente se agrupam ao redor da casa, afiando o bico para o banquete. Ao verificarem que o índio ainda está vivo, discutem entre si o que fazer e decidem finalmente conduzi-lo ao céu. O doente é então transportado até o hospital dos urubus e lá ele é entregue aos cuidados de um enfermeiro, que o cura dos furúnculos com cinza de penas. Quando o índio se restabelece completamente, trazem-no de volta à Terra.
Em retribuição ao tratamento, pedem ao homem que, durante as caçadas, os animais que escaparem feridos sejam abandonados, para servirem de repasto aos urubus. Quando o índio volta à aldeia, transmite essa mensagem aos companheiros” (op. cit., pág. 28).

Esse mito explica a origem de um medicamento, mas também descreve a jornada do xamã — este perde as forças, morre simbolicamente, porém desperta num outro mundo, onde os espíritos se manifestam, e depois retorna à vida, ou a si mesmo, trazendo uma mensagem. Nos sonhos noturnos, o índio Jerônimo vivenciou, conforme me confessou, experiências análogas.
A experiência xamanística, embora pressuponha a ruptura social, o afastamento, o sonho, possui uma função social, pois, ao despertar do seu transe, o feiticeiro ou visionário divulga uma mensagem de interesse geral. O poema de John Cage, que comentamos acima, narra também um apagamento do eu em favor das vozes alheias, das vozes do ambiente, embora esse ambiente seja a sociedade contemporânea, não a sociedade dos espíritos, à qual só os xamãs indígenas têm acesso. Assim, sem perder de vista a especificidade de cada uma dessas experiências, a do poeta e a do xamã, creio que se poderia compará-las, levando em conta o fato de que, em ambas, ocorre um alargamento das fronteiras do eu, que passa a dialogar com um universo muito maior do que o mundo cotidiano. O tom ou a magia da leitura de Cage, porém, torna de certo modo equívoca essa distinção entre o poeta e o xamã — ficamos pisando num terreno movediço, pois se os “Diários” são inicialmente profanos, podem também revelar-se de repente encantatórios, mântricos, conforme passamos da leitura do livro à audição dos cds de Cage. Entramos então no terreno do sagrado.
Sabemos que o xamã, sobretudo se ele for um “wamaritede’wa”, possui o dom da profecia, é alguém capaz de descrever o futuro, encorajando os companheiros à ação. Curiosamente, esse aspecto existe também, segundo entendo, nos “Diários” de Cage — o poeta parece nos apresentar a Internet, a rede mundial dos computadores, duas décadas antes do seu advento. Vejamos este trecho (citarei a tradução brasileira):

“Nirvana? ‘Não só a instantânea
Comunicação verbal universal
Foi prevista por David Sarnoff, mas também a televisão
Instantânea, jornais instantâneos, revistas
Instantâneas e serviço telefônico visual
Instantâneo... o desenvolvimento de um tal sistema global de comunicações
Deveria unir as pessoas em toda a parte... para
Reorientação em direção a um conceito
Unimundial de comunicação de massas numa
Era marcada pelo surgimento de uma
Linguagem universal, uma cultura
Universal e um mercado comum
Universal.’ XXIX. POPULAÇÃO
A arte obscureceu a diferença entre
Arte e vida. Deixemos agora a vida obscurecer
A diferença entre vida e arte”
(“De Segunda a um Ano”, pág. 19).

Citando entre aspas essa profecia a respeito de uma linguagem universal, que parece indicar o advento da Internet, Cage apropriou-se de uma fala alheia e nos transmitiu uma opinião que estava no ar (John Cage dialogava com o espírito da sua época e não com um espírito transcendental, como costumam fazer os xamãs).
Como queria Ezra Pound, os poetas são a antena da raça. E é nesse sentido que eles assemelham-se aos xamãs, sobretudo quando são experimentais e ousados, como o próprio John Cage.

[Espero que o que foi falado até aqui contribua para divulgar a poética “eletrônica” de Cage, centrada numa pluralidade de eus dispersos pelo mundo, e também sirva de estímulo para que o leitor, pouco familiarizado com os experimentos no campo da linguagem artística, reflita um pouco sobre o fato de que a poesia não é exatamente a expressão de uma subjetividade, mas uma experiência, um emaranhado de vozes, como a Internet.]

Ilha de Santa Catarina
2001

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